Quem poderia imaginar que a mulher ávida por sua entrega ao prazer poderia sofrer tão desesperadamente por não ser A Única?
Controversa, Millet reage à presença da "outra" para manter seu lugar especial na vida do marido e também sua inestimável liberdade. Não aceita senão permanecer como a "torre Eiffel encaixada sobre seu corpo" e reivindica o privilégio dessa posição com imaginação e sensualidade que não conhecem limites.
O livro faz parzinho sequencial com "A vida sexual de Catherine M.", em que a autora descreve suas peripécias hedonistas. Escreveu o segundo livro pra dizer que a liberdade sexual do primeiro era uma utopia e que quando tomou pleno conhecimento das aventuras do marido, morreu de ciúmes -- pasmem, num casamento aberto, nada de nada foi traição.
Catherine está com 61 anos. Seu marido Jacques Henric é dez anos mais velho. "A vida sexual de Catherine M." saiu na França em 2001, ou seja, ela já era uma cinqüentona quando suas memórias sexuais viraram sensação. Jacques, por sua vez, também escreveu sobre Catherine no mesmo ano. O livro (não publicado no Brasil) se chamou "La légende de Catherine M.". Em 2004, escreveu outro (também não publicado por aqui): "Comme si notre amour était une ordure!" Foi só em 2008 que saiu "A outra vida de Catherine M.", em que ela escancara o outro lado desse casamento aberto, revelando-se uma ciumenta e possessiva de marca maior. É como se o primeiro livro fosse o corpo, o sexo puramente, e o segundo fosse a alma, os sentimentos de Catherine. Fiquei muito curiosa pra olhar pra esses dois.
Que casal é esse?
Pois ei-los aí, em 2001, num típico apartamento parisiense da categoria apertadinho e bagunçadinho. Removido todo o glamour da intelligentsia literária, vemos nada mais que um prosaico momento à mesa -- e até um certo tédio das previsíveis cenas domésticas de qualquer casal há muito casado.
Franceses hedonistas, esclarecidos da intelligentsia literária e do mundo das artes, libertários, liberadinhos, prafrentex? Não me sai das narinas esse cheiro de café com leite no ar. O tédio desse leite morno é o que me intriga. Algo me diz que esses dois continuam casados justamente por terem admitido a si próprios a farsa a que sucumbiram no seu desejo de despossuirem-se quando mais jovens. O casamento aberto teria sido apenas mais uma conveniência de comum acordo, mais uma "coisa de casal" (que irônico) cujo prazo de validade expirou quando deixou de ser conveniente. Assim, à mesa, me parecem muito tranqüilos e satisfeitos, não no auto-engano, mas na plena realidade da posse consentida, da qual não faz sentido precisar se libertar.
"Nós temos uma relação aberta, ela não tem ciúmes". Quantas vezes você já ouviu isso de um homem casado (principalmente) ou comprometido (ainda que minimamente)? Se a protagonista do "livro mais explícito sobre sexo já escrito por uma mulher" morreu de ciúmes, o que dizer, então, das mulheres tropicalientes ao sul do Equador, hein? Seja ela uma provinciana Amélia ou um furacão independente, e isso só pra pegar dois extremos, du-vi-do que não tenha ciúmes, mesmo que tenha consentido viver numa relação aberta -- como Catherine.
Carinho = zero cal! ;)
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